Um dos muitos prazeres da boa leitura é o de provocar agradáveis surpresas para o leitor. Não é somente uma característica da literatura, nas suas mais variadas formas de expressão (conto, crônica, romance etc.). A busca por conhecimento, específica de um ramo do saber, também produz resultados surpreendentes. Pois bem. Num rápido passar de olhos pelo manual de Leontin-Jean Constantinesco[1], tive a felicidade de perceber a referência que este fez à contribuição que, para a formulação do direito comparado como disciplina autônoma, realizou Beviláqua, enquadrando-a no período de 1850-1900, apontado por aquele como o segundo na evolução histórica que tracejou[2].
Depois de uma referência numa explicativa nota de rodapé, a menção ganha lastro na extensão de uma página, ao salientar a importância do estudo consolidado no livro “Licções de Legislação Comparada sobre o Direito Privado”[3]. Sobre Beviláqua, é possível destacar a seguinte passagem de Constantinesco: “Este grande jurista especifica, na sua monografia, os principais elementos do método comparativo, as formas e os objetivos para os quais deve ser utilizado. Ele examina as diversas formas de semelhanças que a comparação revela entre as instituições jurídicas e tenta identificar as suas causas”[4].
De fato, Beviláqua lançou-se a uma empresa até então inexplorada com a devida atenção, principalmente nas plagas sul-americanas. Principiou por delimitar o assunto a ser abordado[5], consistente na comparação, no confronto, ou cotejo, da legislação brasileira com a estrangeira em sua forma atual, mas, de logo, reconheceu as limitações impostas à sua atividade. Estas consistiriam na circunstância de não se examinar, com riqueza de detalhes, os institutos jurídicos, mas só os seus princípios mais gerais, bem assim que tal atividade não se dirigia ao vasto corpo das leis brasileiras, circunscrevendo-se ao direito privado, o que dá uma amostra de uma não suficiência[6].
Destacando a comparação como um princípio lógico que se encontra em todas as operações mentais, Beviláqua[7], no que concerne às instituições jurídicas de todos os povos, salienta que aquela pode ser realizada no tempo, onde se tem o estudo histórico do direito em geral, ou de qualquer dos seus institutos, ou no espaço, envolvendo as legislações vigentes. Do método comparativo, diz resultarem três vantagens, consistentes no aperfeiçoamento da ordem jurídica, no auxílio ao legislador e em permitir ao juiz uma melhor compreensão da lei pátria.
Projetou e desenvolveu noções acerca do direito internacional privado, sua importância e critérios balizadores[8]. Trouxe-nos, com vistas à facilitação do trabalho comparativo, a exposição do que, na atualidade, tem-se por família jurídica. Cuidou-se da classificação genética do direito civil moderno. Antecipando-se — e muito — a René David[9], a quem se atribui haver expandido e popularizado a expressão “família jurídica”, Beviláqua[10], após levar em consideração a convergência dos direitos nacionais frente ao romano e ao germânico, inicialmente adotou uma classificação tripartite, tal como proposta por Ernesto Glasson. Disso resultou, em primeiro lugar, o registro ao grupo dos povos cujas legislações conservam, predominantemente, seu direito nacional, sendo quase nulas as influências romanas e canônicas.
Nesse âmbito, é possível a inclusão da Inglaterra, dos países escandinavos, dos Estados Unidos e da Rússia. Num segundo lugar, restaram apontadas as legislações que assimilaram o direito romano, numa maior ou menor medida, tendo os seus atuais códigos apresentado as instituições romanas impregnadas de alguns elementos germânicos, de que são exemplos a Espanha, Portugal, Itália e Romênia. Numa terceira ordem, há o conjunto de direitos nos quais os elementos germânico e romano, ambos com influência canônica, conservaram-se distintos, para se fundirem mais tarde em quantidades semelhantes. Foi o que se verificou na França e na Alemanha, com expansão para a Bélgica, Holanda e Suíça.
Num toque de originalidade, Beviláqua acresceu um quarto grupo, composto pelas legislações dos povos latino americanos, as quais, não podendo ser inseridas em qualquer das três categorias anteriores, não cabiam, a seu sentir, ser ignoradas, porque, a despeito de provenientes de fontes europeias aproximadas (Portugal e Espanha), “modificáram diversamente esse elemento comum, por suas condições proprias, e pela assimilação dos elementos europeus de outra categoria, principalmente francezes”[11].
Isso sem contar que, em sendo formado de países novos, de cariz democrático, “este quarto grupo apresenta certas ousadias fortes de quem não se arreceia do novo, e certas fraquezas em que a liberdade espraia-se mais a larga”[12].Tal classificação longe está de ser qualificada como superficial. É que, mais à frente, isto é, nos quatro capítulos seguintes[13], o autor procede ao detalhamento do conteúdo e das características de cada uma das quatro famílias. Os direitos hebraico e mulçumano, mesmo não tendo sido enquadrados em tais categorias, não deixaram de merecer uma atenção especial. Se, por um lado, chega o autor[14] a afirmar que não se afigura descabido que um estudante, num curso de legislação comparada, atenha-se à legislação hebraica, tendo em vista que a concepção religiosa dos povos cultos se prende, por laços de filiação, ao monoteísmo judaico, não descarta, do mesmo modo, ser de maior interesse o conhecimento da ordem jurídica mulçumana, pois algumas “subtilezas, certas elevações de vista mesmo, e grande cópia de decisões profundamente justas e sensatas, fizeram suppôr que o direito mulçumano se inspirára do romano”[15].
Após uma exposição do estado então atual do direito privado brasileiro, o autor[16] desenvolve o confronto de nossa legislação com a alienígena no que concerne aos principais segmentos daquele, tais como as pessoas, o direito de família, a propriedade, as obrigações, o direito sucessório, a figura do comerciante, a falência, sem omitir a importância da jurisdição nas relações jurídicas, envolvendo, portanto, o direito internacional privado. Ao que tudo indica, a atividade comparativa fez com que o anteprojeto de Código Civil fosse um trabalho, para a época, inovador[17].